20 fevereiro, 2024

Enquanto escrevo

Enquanto escrevo

Terras seguem ocupadas

Soldados, terroristas e reféns

Respiram

Em vários compassos

Ao menos por enquanto


Enquanto escrevo

Alguns terão morrido, mas,

E isso é importante, 

Outros soldados, terroristas e reféns

E outras

Mulheres, crianças e civis

Respiram

Em vários compassos

Ao menos por enquanto


Passa multidão num sentido

Me convida

Outra turba corre no sentido inverso

Me convoca


Julgam-me importante, indispensável?

Não creio

Mas minha imobilidade 

Parece perturbar

Tantas convicções


Trazem-me leis, tratados, certidões

Lembram-me fatos, acordos, execuções

Despejam por aqui

Guerras, epopeias, massacres


Depois se acusam mutuamente 

De crimes vários

Condenáveis todos

Perdoáveis nenhum


Convites, convocações e convicções

Enchem por aqui

A caixa de spam

Nada impede que brotem

Meio a boletos se aboletem, 

Meio a prêmios se assemelhem


Todas elas

Vivas porém daninhas, 

Prisioneiras de suas origens remotas

E ignotas

Pretendem-se livres

Para agarrar-me às mãos e aos pés


Mesmo agora, enquanto

Voluntariamente

E na premissa de vários compassos

Escrevo.

06 novembro, 2023

Oficina - lugar onde se elabora, fabrica ou conserta algo

 "É um casal jovem, que vive momentos de felicidade. Eles brincam, correm um atrás do outro, se abraçam, pulam riachos, e por aí. Dão a volta inteira no espaço cênico e ela está grávida. Eles recebem a criança, embalam no colo, se enternecem, depois dão outra volta alegre no espaço enquanto seu filho cresce. Daí eles se abraçam novamente, felizes, até que o homem é chamado para a guerra."

O diretor fez uma pausa, para logo depois emendar.

"Quem pode fazer o casal?"

Duas pessoas se ofereceram, e logo testemunhávamos sua interpretação. 

Depois de alguns apontamentos, o diretor pediu mais dois voluntários para fazer os papéis, e me dirigi ao espaço onde a cena começava.

Ali encontrei a moça, trocamos um sorriso e, enquanto ouvíamos outras instruções, nos demos as mãos.

Só depois vim a saber, mas naquele momento um rasgo se fez na percepção da realidade. Quem é essa mulher? Quem sou eu? Onde estamos? O que queremos fazer?

Minha memória de curto prazo fez sua parte, e mesmo sabendo do final da cena (ou precisamente por isso) vivi intensamente o amor, a diversão, o nascimento e a paternidade. Chegando ao momento da separação, já não tinha dúvidas de que o personagem tomara conta deste corpo.

Mas algo mais me aguardava.

Minha parceira de cena entrara no personagem com tal sinceridade, e sua tristeza pela separação era tão vívida, e tão verdadeiramente partilhamos uma sofrida e imposta distância, que o rasgo na percepção se ampliou, e as "respostas" já haviam surgido.

Já não precisava perguntar quem era ela, quem eu mesmo era. Já não precisava perguntar onde estávamos e o que queríamos fazer.

O rasgo - surpresa! - na percepção era agora um céu estrelado e infinitas galáxias sobre minha cabeça.

Era a vez de outro par experimentar-se em seus abismos. Soltamos as mãos com outro sorriso e sentamos.



07 agosto, 2023

Metalinguística à mesa


E houve um dia em que o escritor decidiu experimentar um restaurante novo para trabalhar e sentou-se numa mesa isolada de frente para a janela, por onde se viam os passantes pela calçada. Duas mesas adiante um homem e uma mulher pareciam ter concluído a refeição.

Na mesa ao lado sentou-se um sujeito que disse à garçonete que ainda não ia fazer o seu pedido por estar à espera de um amigo. Algum tempo depois chegou esse outro camarada e logo começaram a combinar o que iriam comer.

Porque aguardasse uma ideia se cristalizar a ponto do ser vertida para o computador, ou porque a garçonete fora à cozinha perguntar se o prato dele poderia ser alterado como ele queria, o fato é que o escritor começou a escutar a conversa entre os dois homens da mesa ao lado.

O homem que havia chegado antes contava ao outro a conversa que tinha ouvido daquela terceira mesa ocupada por um homem e uma mulher. 

- Percebi, disse ele ao amigo - que pareciam colegas em algum ambiente acadêmico, com grandes afinidades e que estavam animados em saber da perspectiva de um teórico recém descoberto por ambos. Tive a impressão de que o homem estimulava a mulher a seguir o caminho que tinha sinalizado antes, e que agora parecia mais promissor diante desse teórico recém descoberto.

- Sim, e daí? - perguntou o amigo.

- Pelo andar da conversa entendi que ela tinha ficado muito feliz com o apoio dele às ideias que ela vinha ensaiando e organizando de forma solitária. Pela sua voz, sua entonação e suas palavras, entendi que ela estava manifestando pela primeira vez sua gratidão intelectual ao cara.

- Certo.

- Porém depois de ela ter se curvado para pegar um livro na bolsa que estava na outra cadeira reparei que um silêncio repentino tinha tomado conta da conversa. Em seguida ouvi que ela questionava o fato de ele ter olhado para o decote dela justo quando procurava uma citação.

- Hmmmm. E depois?

- Depois você chegou, deixei de prestar atenção neles. Mas entendi o drama do cara. Quem nunca passou por isso?

- Sei como é. Quem nunca?

- Rapaz, o clima mudou instantaneamente da água pro vinho, ou melhor, do vinho pro vinagre! Acho que ela se sentiu traída, sei lá.

- O que devia parecer afinidade intelectual e apoio acadêmico era algo mais, ou algo diferente, talvez...

- Que coisa, não é mesmo? Quando nem a verdade nem a mentira são suficientes!


Embora o escritor seguisse com o olhar entre a tela e a paisagem, a mulher que saía do restaurante conseguiu ser vista, para cumprimentá-lo efusivamente antes de sair com o homem que almoçara com ela.

Enquanto ganhavam a calçada e passavam à frente dele, o escritor viu que seus lábios desenhavam algo como metalinguística.

Nesse momento, enfim, a garçonete entregava seu pedido, justo ao tempo em que a ideia já podia ser trazida em palavras.

31 julho, 2023

Terapeuta

Combinamos um sequestro que não aconteceu.

Liguei para o terapeuta, que se esquivou da responsabilidade. Mas ele bem sabia o que havíamos definido como prioritário.

Ao caminhar da conversa, irritado, o acusei de querer minha paciência por tempo indeterminado. Fingiu estar ofendido, mas seu tom de voz, e o que disse, me convenceram de que a ideia já lhe passara pela cabeça.

Insinuei que sua forma de agir denotava insegurança, e isso o fez tornar-se agressivo. Disse-me com desdém:

- Fala quem precisa que o sequestrem! 

E riu!

Desligamos sem nos despedir.

Até a semana que vem ele saberá com quem esteve falando.


28 maio, 2021

Sobre Insônia (*)

 Um homem escala as paredes do poço

Está nu e só e

Duvida que haja solo livre e plano depois da subida

Sabe apenas que existem

Paredes do poço

Cobertas de tudo o que pretende a inexistência

de paredes

de poço

do homem

E que para tanto se reproduzem e se referenciam de forma entre

cruzada, múltipla, imprevisível


Homem escala paredes do poço

Tão mas tão lentamente

Que parece cair

Tão mas tão disfarçadamente

[para não dis-trair tudo que não é parede mas que

sua superfície recobriu

extensa-brilhante-e-efusivamente]

Que acredita ele-próprio, enfim, não fazê-lo


Homem escala paredes do poço

Ao menos é o que ele sonha fazer

Agora que dorme com seu dia inteiro feito e por fazer

Agora que a vigília toldou-se de embriaguez sem prazer e inespontânea


Homem escala paredes do poço

Impedido de deitar-se antes de conseguir ou de desistir

Segue acordado



* Esse escrito é de 2016, devo a Yan Rego tê-lo encontrado e me enviado. Pensei que não era de minha autoria, mesmo reconhecendo fragmentos de estilo. Esse esquecimento quero creditar ao fato de estar dormindo melhor.



17 julho, 2020

Água no Moinho - Inaugural

Há ocasiões em que a verdade me rompe as prevenções e hábitos, e sou somente fluência, crença, contato.
Pode acontecer uma vez por ano, ou duas vezes na mesma semana, ou várias vezes ao longo de um mesmo dia.
Vou contar aqui algumas dessas ocasiões.
Era muito cedo, e como eu ia viajar de carro a trabalho, parei num caixa eletrônico de uma agência bancária de rua. Somente havia acesso às máquinas de saque. Após retirar o dinheiro e me virar para sair, reparei uma menina linda que estava ao lado de sua mãe e outras duas senhoras. Pequena ainda, pois teria no máximo três anos de idade. Absolutamente encantado com o inusitado desse encontro, falei "Mas que menina linda!". Todos da família me olharam surpresos, e então reparei num menino um pouco maior que estava ao seu lado, me fitando com atenção e um leve sorriso. Então fiquei ainda mais entusiasmado: "Mas são dois! Quanta beleza junta!". Ambos pareciam curiosos acerca daquele adulto empolgado. Olhei para quem parecia ser a mãe, a tia, a avó, e agradeci:
"Vocês deram luz ao meu dia."
Saí da agência encharcado desse encontro, e quando menos espero a sensação me toma como se estivesse lá, maravilhado com a beleza daqueles pequenos seres.
Por vezes, essa lembrança me toma tão fortemente que me vêm lágrimas inexplicadas aos olhos, e minha racionalidade quer argumentar que meu encanto se deve em parte à reação das crianças e dos adultos que as acompanhavam. Sim, ficaram surpresos, gratos, felizes. Sim, certamente não esperavam que em um local tenso como a agência bancária um homem adulto fosse dar atenção a duas crianças negras e aparentemente pobres.
Sinceramente, rejeito essa explicação, que é apenas uma tentativa de emoldurar fenômenos em temáticas sociais, com maior ou menor teor de ideologia, como uma tentação do idealismo vaidoso.
Acredito que a grandeza do maravilhamento está acima desse tipo de moral da história. Está no alinhamento das condições internas e externas, que por vezes permitem(-nos) a fruição explosiva e simultânea de sinceridade, afeto e encantamento.

19 maio, 2017

Dez escolhas idio-lógicas e um exercício idem

Idio-logia 1
Entre as formas
de solidariedade
prefiro as voluntárias,
por respeito ao idioma

Idio-logia 2
Entre as formas
de propriedade
prefiro as que alegram
e alimentam
mais pessoas

Idio-logia 3
Entre as formas
de identidade
prefiro as construídas
(embora as descobertas
tenham também
seu encanto)
enquanto
as herdadas e defensivas
se cristalizam
e frequentemente
não fluem:
apenas influem

Idio-logia 4
Entre as formas
de opressão e autoritarismo
prefiro
.
.
.
[Não não não 
que bobagem:
estas formas
não permitem
preferência]

Idio-logia 5
Entre as formas
de trabalho prefiro
as que dão felicidade
a quem trabalha
[e aos que dele
dependem], prefiro
as que desenvolvem
e revolvem
às que apenas
empilham dias
e metas; prefiro
aquelas onde
confiança e justiça
são fundamento
caminho, nutrição
e oxigênio;
prefiro aquelas nas quais
longas linhas de montagem e agregação de valor
e de custo
sempre se alonguem mais na consciência, no tempo, na causalidade, nos sentidos; e
sejam visíveis e visibilizáveis e
mutuamente influentes

Idio-logia 6
Entre liberdade e igualdade
prefiro recusar a escolha:
que uma siga em frente
até que a outra
se faça necessária

Idio-logia 7
Entre o afeto
e qualquer outro meio
escolho o único
que aos demais dá sentido
de tal forma, e com tal intensidade
que chega a dispensá-los

Idio-logia 8
Entre as formas de violência
prefiro as assumidas
as que se identificam,
as que não ocultam
consequências causas
e danos colaterais:
prefiro as honestas passíveis
portanto
de em um dia
se transformarem.
Prefiro as ruidosas
evidentes
autorais, espontâneas, demaquiladas
e sem medo
dos espelhos

Idio-logia 9
Entre as diferenças
prefiro aquelas 
que se pode comparar
e sobre as quais
se pode falar

Idio-logia 10
Entre os lados 
que frequentemente
se opõem, prefiro
escolher caso a caso
mesmo que as companhias
se alterem, e que o tempo
em que esperam meu posicionamento
agregue um tanto
de adrenalina
ao pulsar dos interlocutores

Exercício para teste idio-lógico
O hábito
as companhias
as opiniões positivas
que guardei,
todos me condicionaram
a manter categorias
definidas como gavetas
nas quais venho colocando
1. os merecedores de afeto
2. os reiteradores de opinião
3. os funcionais 
(que me servem como máquinas)
4. os invisíveis, e/ou os inexistentes
Uma vez que as assim chamadas
ideologias
se nutrem do que
entra-sai-e-fica
nas gavetas respectivas,
o exercício consiste tão somente
em mudar pessoas
de gavetas
[durante um tempo]
e observar, anotando
as reações
próprias e exteriores
ao inevitável desconforto.

Aprendizados em áreas de risco

Amigo, especialista em arte, aprendiz de estética como libertação, avisou-me que eu não poderia ir de peito aberto, para não ser devorado.

1. Que peito aberto?, perguntei, apalpando sob a camisa o largo espaço entre os braços e abaixo do pescoço.

2. E fui assim mesmo pronto a devorar ou ser devorado.

3. E voltei a encontrá-lo outras vezes, sempre com o cuidado de fingir que tinha ainda todos os órgãos.

4. "Mas tu me emprestas o colete à prova de balas e de bulas"  - respondi.

5. Realmente sem humildade melhor nem sair à rua devido à umidade da casa em seu interior, que me habita e habituou.

6. Ai da nossa amizade, está repetindo meus erros.

7. Pior que ser devorado pelos críticos e ignorantes é ser desprezado por todos depois trancafiado pelo medo de ser desprezível.

8. Enquanto isso me devoro.

9. Enquanto não, isso me devora.


[Escolhas podem ser feitas nos comentários.]

05 fevereiro, 2017

SOBRE AS GRANDES CAUSAS NO TRABALHO (E A ADMINISTRAÇÃO DE SUAS EXIGÊNCIAS)

Poeta envergonhado e mudo fui
no Sesc Rio de Janeiro
onde passei temporada
Mil explicações terei, tantas
para estas
vergonha e mudez
[E que a assumida
insuficiência dos versos
não sirva de argumento
a toda esta timidez!, pois
se não pode ser si mesmo
tampouco a ser poeta
um pode se habilitar]
A melhor razão que acho
entre explicações sem uso
achadas em velhas gavetas
é que a causa não era
coisa de um homem só
mas, sim, de
múltiplos personagens
entre si entretecidos
e pré-re-cortada-mente
segrega-hierarquizados
sendo pois este escriba
apenas mais um lutador
entre tantos escalados
Razão torta, assim montada
trai verdadeira pulsão
e deixa à frente o soldado
que, na trincheira entalado
sem sonhar com a rendição
nem com louros da vitória
abraça o fuzil gelado
e junto com sua história
espera o tiro calado
Esta explicação
é a que sobrevive
no meio da confusão,
digo que melhor não tive
mas agora, solitário
imóvel no feriado
suspenso no calendário
decido rever comportas:
que águas da decisão
levem todas de uma vez
as razões de tanto não
por si mesmas natimortas
Se ao trabalho levei
intenso investimento
[tempo afeto emoção]
para enfrentar uma vez
poeira papel cimento
quilômetros reflexão
ano-luz reunião
planilha texto urdimento
projeto fluxo: decisão
pré, ante e pós orçamento
projeto na contramão
relatório em cumprimento
plano de power point
que contagem, auditoria
outra revisão aponte
plano de cargo e salário
com ou sem ansiedade
e que algum comitê
cometa erro conjunto
antes que comunicação
ajude a mudar de assunto
e gerência de unidade
transmita pra todo mundo
e todo o planejamento
transforme em diagrama
e as moças dos processos
sorrindo arrumem tudo
galera do erre agá
faça outro cronograma
e mesmo jurídico aponte
uma outra filigrana,
Nem mesmo no mar coalhado
de titãs-e-seus-esforços,
nem por isso evitei
olhar no próprio momento
pessoas olhos e escolhas
narrativas incompletas
sentires de antes e além
mãos fragilmente dadas
e tantas outras por dar
esperanças partilhar
missão em bom lugar guardar
passados reconhecer
e entre compromissos vários
tudo que é bom esperar.
E, assim como quem vive
cada dia de uma vez
posso agradecer que tive
herança sem viuvez
e onde estiver (que fui!)
sigo ligado a vocês.

03 dezembro, 2015

Fresta

Passo pela porta dos fatos e entre-reavejo paquistaneses orando seus mortos em paisagem desolada e árida [outros mortos de tantas coletivas misérias que desconhecemos tacitamente]. E depois de passar, volto caixões de madeira na foto e ao lado fileira de pessoas cobertas por roupas com as que nunca usarei.  Estranheza mútua! entre foto-fato e eu que transverso alheio paro e fabrico, da unidade humana apenas pressentida, da vontade de ser o que nunca serei, esta comemoração aqui partilhada.

17 maio, 2015

Consulta médica e suas caraminholices

A médica falou pra fazer um poema, resisti como a qualquer orientação médica, pra piorar vi algum sentido naquela, e me aborreci por precisar que alguém me mandasse respirar, nem que fosso fosse pra variar, e ainda pior a ideia embora me passado pela cabeça não tinha sido seguida, e assim como em todas as consultas aquela estava me saindo caríssima, pois preferia pensar que minha doença e imobilidade − tão mas TÃO incontornáveis e que por tantos dias vinham se arrastando − fossem consequência de algo TOTALMENTE fora de meu controle e entendimento, e agora diante de tamanha obviedade só me restava alguma de duas supremas desonras, ou 1) a de não tê-la percebido antes, com prejuízo de uma quantidade não desprezível de autoestima, ou 2) a de negá-la, com sacrifício da própria saúde, e para piorar senti nesta hora a falta de um médico convencional, personagem com o qual tantas vezes tivera diálogos difíceis ou mutuamente indiferentes, nos quais cortesmente havíamos ignorado o conhecimento do outro, e nos apegado aos respectivos universos, situação nas quais eu tinha, para uso a qualquer momento, o trunfo supremo de decretá-los estrangeiros, invasores, profanadores das intrincadas engrenagens que eu montara para me entender e me aceitar, recurso inviável naquela circunstância pelo simples fato de que usara em todas estas peças cimento de poesia que não podia mais fragilizar ou consumir com a saliva ácida da minha vaidade.

Pois fechei Voip, navegador, memorandos eletrônicos, contas de e-mail Silenciei Celulares, campainhas, alarmes, jornais, sinetas, trombones, Adiei Calendários, consultas, efemérides, compromissos, eventos. Silêncio improvisado, conquistado, ainda sem comemoração, e no entanto. (Coração batendo!, surpresa! Enfim algo a comemorar.)

18 abril, 2013

Vera Lúcia Já são 60 minutos desde que Ricardo veio trazer a notícia, e neste momento me pergunto se aproveitei realmente todo o tempo que tivemos de convívio. Chegam de várias partes abraços, lágrimas, solidariedades em forma de voz e silêncio. O telefone preserva uma mudez improvável em um dia de trabalho. Junto fragmentos de nossa história comum, e as lembranças de tudo o que fez nossos caminhos se encontrarem. Entramos no Sesc na mesma semana de um setembro distante, e os números de nossas matrículas testemunhavam esta proximidade, que depois eu quis entender como antecipação de futuras e esperadas parcerias. Aqui faço um parêntese estritamente individual. Tive pais que se conheceram nas aulas de matemática para se tornarem professores, e segui ligado a esta dupla origem: conviver com números associados a pessoas. Gosto de pensar que terá sido essa uma das marcas a me juntar à mesma equipe da Vera, porque a busca de sentido é permanente e ocorre nos diversos planos em que nos projetamos. Mas minha intenção aqui é tentar descrever o legado de sua presença no Sesc. Se tivesse que escolher apenas uma das marcas deixadas pela Vera, louvaria sua obstinada dedicação não somente em coletar e organizar números, mas, principal e fundamentalmente, em dar-lhes sentido. Antes de mais nada, ela foi uma estudiosa que colocou seu conhecimento e seu esforço a serviço de uma finalidade social. Sua atenção, sua memória, sua argumentação, suas propostas, suas brigas, todas convergiam para as noções de correção, de respeito à finalidade dos registros, de compromisso com a razão de ser do Sesc. Nunca houve da parte dela palavra que traduzisse ausência de compromisso, preferência pessoal ou defesa fechada de qualquer posicionamento. Seu pensamento não hierarquizava funções, mas, sim, organizava conceitos. Nunca deixou que seu apreço pelo rigor decorresse de satisfação pessoal ou de qualquer superioridade da matemática sobre a realidade. Ao contrário, seu esforço tentava demonstrar que, pela clareza e difusão dos conceitos, era possível articular uma ação coletiva consequente e articulada. Tornou-se para todos a principal referência para entender a "linha de montagem" que deságua nas informações da instituição, e um verdadeiro repositório de senso de realidade. Incentivadora ao reconhecimento e valorização de sua equipe, nunca confundiu liderança com proteção. Cultivava o mesmo senso de justiça em tudo o que decidia, afirmava ou negava. Estudiosa, aplicada, disciplinada, incentivava nos demais estas qualidades. Nada mais importante para alguém que se fez professora dentro e fora do Sesc. Chamada a ajudar outras equipes, juntava ao simples fazer o ensinar. Com isso, deixava sementes de continuidade e progresso individual. Nas pesquisas que fez pelo Sesc, concebendo, planejando e executando seus passos, manteve sua fidelidade ao rigor metodológico, sinal de apreço às pretensões maiores do conhecimento fidedigno da clientela. Guardamos com cuidado suas lições de garra e amizade; o bom humor que aparecia somente depois de abordados todos os assuntos exclusivamente profissionais, e os relatos que tinham João Pedro como personagem principal. A esta altura posso tentar responder à questão inicial. Todos na equipe da gerência e do Sesc como um todo reconhecemos o esforço em continuar contribuindo, não obstante as dificuldades trazidas por seu estado de saúde. Seu tempo foi valorizado ao máximo, e rodeado de carinho e reconhecimento. Com enorme gratidão, manteremos na memória e vamos traduzir na prática seu exemplo de presença ética e engajada. Obrigado, Vera, pela participação que teve e seguirá tendo em nossas vidas.

04 março, 2013

Fotos para Yan






13 janeiro, 2013

Ivan

O ano de 1974 começou para mim com a tarefa de refazer percursos fracassados do ano anterior. A reprovação no concurso para o Colégio Militar ao final de 1973 tinha "coroado" um ano inteiro de inadaptação ao Palas da rua José Higino, no qual, sem amigos e sem aprender muita coisa, eu tinha rebaixado um pouco minha auto-imagem. Resolvi tentar mais uma vez ser um "boina vermelha" do Colégio Militar do Rio de Janeiro, e para isso voltei ao Palas, agora no local que havia sido o "Tijuca-Uruguai", com novas turmas e novo espaço. Eu já estava deixando a infância, e tinha tido amigos, e brincado em profusão, mas até pouco antes do início da adolescência não tinha encontrado alguém verdadeiramente parecido comigo. Foi, portanto, com dez anos conheci Ivan, que soube das minhas excentricidades sem se colocar acima ou abaixo, e sem fazer das diferenças motivo de rejeição ou curiosidade. Ivan era como eu um consumidor de livros, que lidava com o conhecimento escolar juntando aplicação e ludicidade; diferentemente de mim, apoiado mormente no que o saber trazia de jogo e fantasia. Passamos juntos no concurso. Ivan estava entre os primeiros colocados, e assim permaneceu ao longo do percurso escolar, e da carreira propriamente dita. Em todo o tempo de convívio, nunca abandonou a horizontalidade no olhar, nem deixou que sua posição traduzisse uma superioridade, fosse real ou inventada. Ao mesmo tempo, nunca permitiu que a pecha de CDF (o que em termos atuais se traduz por "nerd") o afastasse do convívio e da naturalidade, das pessoalidades, das descobertas para além das notas, provas e colocações. Conversamos desde este tempo sobre política, religião, filosofia, literatura, música, artes, e o que mais estivesse ao alcance dos sentidos e da imaginação. Éramos patriotas em formação, coletivistas aprendizes, indagadores das diferenças entre o senso comum e o bom senso, e partilhávamos a estranheza em relação à voracidade competitiva tão comum em meninos naquela idade. Meu convívio com Ivan deu novo sentido à ideia de amizade. Ele foi naquele tempo quem eu orgulhosamente chamava de "melhor amigo", sem receio de errar ou trair. Depois? Fomos ambos atingidos por ondas de complexidade mundana, aquelas que Newton via da praia como o "oceano da verdade", segundo citações internéticas. Família, filhos, viagens, além do meu atávico sentido introspectivo, nos distanciaram. Eis que o encontro novamente, tantos anos depois deste início, e vejo como manteve o entusiasmo temperado com cautela, a tranquilidade na acepção do "outro", ainda que este lhe seja tão distinto. Em seus poucos exemplos profissionais vejo a tentativa de desmontar sistemas de meias-verdades, em lugar de culpar pessoas por suas crenças isoladas. Para comemorar este encontro, portanto, deixo aqui esta homenagem em forma de lembrança e os votos de que prossiga aprendendo e ensinando virtudes.

27 janeiro, 2012

Algumas palavras sobre Manoel

Vejo Manoel ainda pequeno, pés no chão, no meio do mato ou perto dele, rodeado de bichos e plantas e sementes, inventando brinquedos, mente povoada e ao mesmo tempo ameaçada, reunindo ousadia para projetos tomara possíveis.

Manoel, Mané, Manèzinho, diminuto e filho-já-no-nome de outro Manoel, obrigado por isso a estabelecer oposição e contraponto a um pai (meu avô) falante, cambiante, excessivo em fluidez e desembaraço, abundante em desejo mas econômico em método, em ordem, em estrutura, em separação e julgamento.

Manoel, Mané, Manèzinho, herdeiro por parte de mãe de um silêncio dos afetos, da impossibilidade do contato direto, portador da missão de encontrar, no deserto, algo que represente a água, que simule a água, e que passe por líquido, mesmo sendo pedra.

Manèzinho entre irmãos, ora frágil, ora responsável, ora apoiador, ora perseguidor de padrões rígidos.

Manoel, Manèzinho, arquiteto improvisado da própria infância, solitário pai de si mesmo, manuseador da inteligência em favor da sobrevivência.

Na solidão familiar, no meio do mato, dormindo sozinho na casa e se fiando no vizinho, no transeunte, no morador de rua, no poder da pistola de brinquedo, Manoel iniciou muito cedo a luta contra fardos de fatos.

Depois de interrompida a escola, a ela voltou com sôfrega ambição; e desde então foi mente determinada, recursiva, atenta. Manoel memorizador, conector de relações entre o cotidiano e as passagens históricas, cultor dos feitos intelectuais e dos heroísmos sem glória.

Na farda adotada representou o ser responsável, o provedor, o montar guarda, o vigiar sem trégua.

No esporte foi fundista, para longos percursos, muita respiração e disciplina.

No estudo feroz afirmou vontades, matematizou a identidade, engenheirou pontes levadiças: firmes, porém pouco transitadas.

Filhos, teve, e o melhor Manoel lhes dedicou: o da proteção, o do brincar, o do exemplificar. O pai dos espaços verdes, do movimento, da invenção, da admiração do intelecto, da contemplação. Trouxe também para a paternidade suas dificuldades, pontos obscuros do não-brincar, do não-expressar, do não-admitir, do jamais-ter-entendido.

Talvez pela confiança e autonomia do Manoel que inventou pra si, não se envergonhava de sua excentricidade, e fez disso um traço em negrito a contornar peculiaridades, desafio para mentes infantis que tentavam interpretar sinais, para sabê-los perturbadores ou tranquilizadores.

Filhos teve, e no educar da única filha construiu renovação inesperada e florescente.

Assim foi meu pai, determinado, rigoroso, exigente, e por outro lado compassivo, imaginante, fantasioso.

Mais tarde em sua vida, os diálogos não resolvidos entre coração e mente vieram cobrar sua fatura atrasada.

O acidente cerebral resultou da combinação de pavimento escasso para muita intenção de fluxo, numa época em que não queria mais inventar caminhos.

Deixa filhos, tradições, legados; sonhos, contradições, guardados.

Deixa irmãos, sobrinhos, netos; leva onde pode os afetos.

E de tantos relacionamentos, ainda que árido, inacessível e por vezes intocado, deixa o ter despertado bom sentimentos, o que aqui, finalmente, a todos agradecemos.

26 junho, 2011

Poemas de São João

POEMAS DE SÃO JOÃO
1.
À porta bate
mar e
à parte ecoa, distante, seu marulho
como se à porta
não estivesse

Impressão de evasão
e multiplicidade fugidia
tornam desconfiáveis para sempre
e entre si suspeitos
os sentidos do tato e da audição

Árbitra da mútua acusação
a autoria destas palavras
à porta se dirige
e mergulha

2.
Absoluta
como a vontade de Sua existência
a decisão pela presença chama
não de "rastro"
mas sim
de irradiada passagem
e manifestado registro
os caminhos percursados
rumo ao alegre convívio
com o atemporal fluxo
do tempo.

3.
Absoluta e fêmera
escolha
absoluta escolha
descola do que escolhe
e surpresa reconhece
liberdade
da queda à morte
do voo à eternidade,
seja qual resultado, louva
desde sempre
coragem esquecida de si
que avança.

4.Mulher, sua função apossou-se
do espaço que lhe conferi
– ainda que em conflito
com cores e formato-altura
deste espaço –
como se pássaro em gaiola fosse
pássaro, mulher em espaço-função
definida te transformaste,
e na gaiola enfim,
mesmo eu do lado de fora
me aprisionaste
(dono de meus conceitos,
autor de minhas vitórias,
revisor atento
de minhas memórias).

5.
Do passado no presente energem
ou emergem
Mauro-MariaLuíza, idênticos, xarás de si próprios,
edênicos
(será que terei sido,
serei quem terá sido,
logo sempre – depois
de ter nascido,
pergunto-me)
Suas vozes inundam, no entanto,
o presente-presenças:
não são quem foram outrora, mas, sim,
onde de fato agora estão.

Passado emoldurado, presente sem medo e aberto,
Mauro-MariaLuíza
são.

05 dezembro, 2008

Volta

É, ainda estou voltando.

Dia desses chego.

(Ou volto?)

03 junho, 2007

Grandes amigos & seus filhos

Dois grandes amigos-personagens tiveram filhos com espaço de nove dias.

(digo "personagens" porque ambos, em situações diferentes, me apoiaram em momentos difíceis, entrando desta forma para minhas histórias)

É como se os visse desdobrando-se, tal como eu me desdobrei.

Faço um bom silêncio, daqueles orientais, e cumprimento-lhes a rosa da existência.

Que se nos apresenta novamente, tão perta, tão múltipla.

26 maio, 2007

Reserva ambiental

Caros leitores, acabo de voltar de uma reserva ambiental no Pantanal. Um banho de natureza e saúde.

Fizemos belas imagens, ótimas entrevistas, falamos com pessoas de realidade bem diferente das nossas.

Em particular, fiquei sabendo que um dos projetos de desenvolvimento sustentável que antes era apenas uma idéia hoje tomou corpo e já cresce sozinho.

Terá sido meu entusiasmo ou nessa viagem só estive com pessoas legais? Duas hipóteses que na verdade não são excludentes e por aqui (em mim) se complementam.

05 janeiro, 2007

Acácias

São as árvores que "tive" na infância, defronte as janelas e enviando folhas e insetos pra dentro de casa.

Hoje de manhã percebi que uma delas tinha semeado no asfalto e na calçada em volta dela a típica roda de flores amarelas.

A "Mãe Natureza" (ou qualquer outra coisa que mereça estas aspas) me enviou desta forma a mensagem/argumento para a sensibilidade, que assim me retirou da manivela dos dias e me trouxe até aqui.

(Paro pra pensar em como têm sentido as coisas às quais damos sentidos, e seria capaz de escrever muito sobre esta obviedade, cuja graça reside exatamente em.)

Mas vou ter que deixar das acácias somente a imagem, ao mesmo tempo desejando ver ainda em janeiro os flamboyants e os fícus que se espalham pelo Rio.

17 dezembro, 2006

Sexo

O sexo é uma forma concentrada de expressar o ser.

(A oportunidade de "ser verdade", enfim.)

O amor, por sua vez, é espaço.

(É quando o ser esquece de si mesmo.)

*

Viria daí a associação de que "homens fazem sexo" e "mulheres fazem amor"? QUANTA SIMPLICIDADE NA ASSOCIAÇÃO. (Nada como uma obviedade bem simples pra seduzir nossas próprias necessidades de segurança.)

*

É um post bem curtinho. Otimistamente, gostaria que ele fosse a explicação para minhas ausências deste blog, teria estado a aprender sobre o amor e o sexo.

Mas otimismo tem limite. Não é verdade que minha ausência se deva aos aprendizados.

Apenas como metáfora, e cada fenômeno com seu ritmo, entendo que escrever-abandonar-escrever tem um tanto de concentração e um tanto de espaço.

06 novembro, 2006

Casa

Por obras do destino retorno à casa em que cresci.

(Muitos dos meus amigos já conhecem o endereço, sinal de longevidade nos relacionamentos.
Percebo também que muitos não conhecem o endereço, sinal de renovação nos relacionamentos.
Imagino que precisarei de amigos de todas as etapas da vida para corresponder às generosas instalações da casa.)

Todos serão bem vindos, mas quem chegar por estes dias só vai encontrar trabalho pra fazer, e pouca estrutura...

Daqui a um mês, hmmm, ou menos, teremos lugar pra sentar e comer, e papel pra desenhar, e música pra ouvir, e cerveja pra beber.

Os quartos vão para Yan e Layla, mas com jeito cabe meio mundo naquele apartamento, e falo da metade que mais importa.


* * *

Preciso agradecer aos visitantes do blog, que continuaram prestigiando o endereço, mesmo "estacionado" desde março!

De lá pra cá tomei doses diárias de realidade, e estou me aprontando para uma recarga de delírio.

Minhas melhores saudações,

16 março, 2006

Recicla-gen

Gullar ensina que a poesia é o presente, e com estes olhos abro arquivos de muito tempo atrás, do "Corpo Oral", que assim atualizo, "presenteando" passados.



Quero escrever
tudo –
sou pretensioso –
quero escrever até mesmo
maior e mais do que eu
nesse tamanho, quero sim
escrever este azul derramado e
o sangue escondido,
o amarelo imaginado e o verde
reesperado
Quero escrever desesperado!
Morto e redivivo
fétido decomposto
– e perfumado –
quero escrever incendido
e congelado
torto tédio estendido
e aos meus pés ajoelhado
como poeta
me fazer desavessado
e retorcido
ME FAZER UM PRODUTO ACABADO
e renascido
me fazer este beijo
e este grito
e desfazer neste vento
o meu mito
escorrer pela água
e contrito

Quero escrever avoado
e perdido
instantâneo e maldito

Um grito subcutâneo
e pré dito

quero escrever duplicado
e em três rarefeito
de mim mesmo copiado
e distinto

Dizendo
à pele
que à pele do mesmo
repele
e contrai matrimônio
e contém desta vida o fluido
o fluido ruído
obstinado
e repetido

21 fevereiro, 2006

Leitora minha

Curiosa vidente, olhos

que afirmam,

mãos que falam: testemunha da materialização

entre devaneio e fala

entre a coincidência fabricada e a rima manipulada

entre a palavra fortuita e o parágrafo acabado;

leitora

minha-indagante

coração pré-e-ocupante,

de silêncios fabricante e,

principalmente,

da finalização aguardante.

20 fevereiro, 2006

Cebolas [e cebolinhas]

Uma casca a mais, outra a menos, somos cebolas

cujo centro nunca se acha.

E este centro de "nada" se alimenta e re-obra.

Daí que a outra casca a mais e (esta!) a menos

segunda-e-feiramente se comemora.


[As cebolinhas? Enxeridas, vieram apenas

pra desmentir a simplicidade tão superlativa

e dar gosto e colorido.]

10 fevereiro, 2006

Sintonia e prosa

Fina, sintonia.

[Tantas vezes venho aqui falar das pequenas epifanias, que nesta manhã me constato algo (menos ou) diferente de um poeta, e algo mais perto de um garimpador de coincidências, assinador de quadros (alheios, casuais) que encontro prontos, fotógrafo e crônico-amante de personagens e cenários subitamente relampejados.

E minha vida tem sido a seqüência de descobertas, e alegrias tão intensas quanto indescritíveis, que, com timidez no início e com deslavada honestidade hoje, insinuo e oculto em público, como nestes dois parágrafos.]

E meus leitores? Tão silenciosos, e aguardados, ainda ontem descobri a página foi acessada a partir da Índia... E me vejo pensando num hipotético leitor que nada entende do que lê, mas se encanta assim mesmo com o canto do Universo feito a partir daqui, como o observador da Prosa do Observatório do Julio Cortázar.

(...) Tenho que interromper minhas digressões tão caras. Ficou claro que estou feliz hoje? Bastante? Então a comunicação não foi tão truncada. Depois eu volto.

30 janeiro, 2006

Trama

Um tipo de louco encontra

suicida procurando cúmplice e

logo se tornam reféns

das próprias indecisões.


* * *

Sei bem que a segunda feira pede algo mais leve, mas cada momento tem sua gramatura, seu peso específico, seu centro de gravidade.

E não poderia perder esta descrição que me ocorreu, tão sintética que tem cara de verdade.

26 janeiro, 2006

Surpresa

Acordei hoje sem contradições.

Passos tão simples dei até onde estou, que nas curvas estranhei parecerem retas.

Doses homeopáticas de vazio-e-fé terão dado conta, e nisso admito uma surpresa.

Claridade, sensação, tato, aparecem como conseqüência.

E me sinto novo, e antigo, e nem assim me contradigo.

23 janeiro, 2006

Pistão

O mesmo que "pistom", ou "êmbolo", peça redonda ou cilíndrica que se move em vaivém no interior de seringas, bombas, etc.
 
Ou ainda (segundo o Houaiss, no original francês): "peça cilíndrica que se move em um tubo, seja para exercer pressão, seja para transmitir um movimento".
 
Poesia ou engenharia mecânica? Apenas caos embebido em diferentes intenções, presumo.
 
Seja como for, a linguagem que serve para revelar é a mesma que oculta, e por isso metáforas têm que se mover sempre, para frente e para trás.
 
(E por aqui encerro, uma vez que economizar explicitude só a amplia.)

16 janeiro, 2006

Habemus

Contradições tão alegres, mas tão falsas, tão traiçoeiras.
 
E por causa delas o que parecia alegria, na verdade, é adiamento.
 
(Encontrei uma ave que me atravessou o caminho, e nela fui.
 
Agora volto.)
 
* * *
 
Carlos Márcio: em francês deve ser marqueterie, em português marchetaria. Quase marqueting, esta invenção do Mal. Mas têm origens diferentes.
 
 
Pessoa faz coisas impossíveis, e neste caso arredonda todas as linhas retas para uma curva única.
 
*
 
Na sexta feira conheci o Largo da Prainha, perto da praça Mauá, e acanho de dizer que nunca antes!
 
De qualquer forma, tarde do que nunca, fui ver o "samba de raiz", e como deslumbrado amei. E essa a melhor forma de amar, deslumbrado mesmo.
 
*
 
Amar? A espera, a demora, o espaçar contrair, a força, a fraqueza, o jato, o nunca.
 
*
 
Cozendey, venha com todos para o carnaval que entraremos em todos os blocos com ou sem raiz.

13 janeiro, 2006

PS

Como revisor, rejeito palavras que não estão nos dicionários.

Como escritor, as invento.

E assim vivemos! (Alegria também se pode extrair das pequenas contradições.)

Tanto

Amor silencioso

e intenso

espera-esperava.

[Pausa. Tenho que reconhecer que o cenário é o do Eros e Psiquê, que transcrevo:

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Fernando Pessoa

Fim da pausa]

Pensando bem, a pausa substitui o resto, silêncio noturno e espera-esperava, tudo o mais é pura perda. Cadê Gullar que não me ajuda? Escrever e publicar ao mesmo tempo é um desafio, e assim se perde às vezes.

Mas o resultado me agrada, ainda que colado sem cerimônia, está pleno, e pela leitura agradeço.

Carne viva

Carne viva, nervo exposto

Mas, contrário, retardo e traio,

Diário, a ansidão.

06 outubro, 2005

Arrumando a casa

Onde colocar móveis que tão bem cabiam em outro contexto?

Como acostumar as roupas aos novos olhos?

Como desfazer malfeitos, entender mal entendidos, saber de novo o outrora sabido?

Melhor não sofrer com mudanças, certamente, e extrair prazer a cada forma ou ausência.

* * *

Uma das minhas alegrias é a de olhar o maciço da Tijuca, que tão bem se vê de cá da Barra, onde trabalho, e da minha janela noturna.

Como podem ver, estou amando a minha aldeia, e por isso transcrevo Alberto Caeiro:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

30 julho, 2005

Caríssimos leitores

Tenho andado longe dos micros e deste blog, não obstante meus leitores tão constantes, aos quais aqui agradeço.

Em breve voltarei, ou chegarei, e pela distância envio este aceno.

29 junho, 2005

O ano de 1984

Comecei 1984 fechando o livro que lançaria com o Lula e o Carlos Márcio. No primeiro dia de janeiro conversamos sobre capa e contracapa, e nas semanas seguintes pusemos a coisa para acontecer.

Sintomaticamente, depois de mandar o livro "para as máquinas", comecei a escrever diferente. Por volta de março ou abril fiz meus primeiros poemas corpo-orais. Era como se meus poemas começassem a ter cor. Como se eu mesmo passasse a aceitar ter um corpo, e ele falasse. Ao longo do tempo que se seguiu, fiz poemas louvando o corpo, e comecei a escrever com um pouco mais de espontaneidade, inventando palavras e fazendo outras gracinhas.

Foi nessa época que fiz o poema título "Corpo Oral", que inscrevi no concurso da Biblioteca pública de Jacarepaguá (!!!), por indicação do CM, e que me valeu de prêmio o livro (um pouco chato) com a antologia do Neruda.

(Não sei se vou publicar este poema aqui, os anos passaram e hoje vejo o quanto de corpo ainda faltava ter. Vou reler e decidir.)

O tema da poesia e do livro percorreu o ano todo. Por conta da greve da universidade (??), a impressão atrasou, e o lançamento foi lançado para o segundo semestre...

(e vamos fazer uma pausa!)

(voltei)

... sendo enfim lançado no dia 15 de outubro. O lançamento foi animado pelo recém fundado "Grupo Clãdestino de Arte-Educação".

Depois de 21 anos, é natural que o "encalhe" seja pequeno. Eu devo ter uns 12 exemplares, CM não terá nenhum, e o Lula, segundo consta, tem todos os que recebeu. O que pode ser considerado um tipo de estoque especulativo, para quando um de nós ficar famoso.

(próximo capítulo: a arte educação)

[achei:

Corpo corpo
inexato longo corpo
parte mais óbvia da alma
como ela mole
moendo com ela o dia
comendo com ela o pó
nascendo com ela à noite

Corpo longo perto corpo
porta peça surda louca
hoje torta logo morta
coisa massa
de outros corpos longos tortos
muitos mesmos sempre amorfos
se tornando outros corpos

Corpo negro largo corpo
vão de muitas flores mudas
chão de todas tardes nossas
pão de bocas lerdas forças

Céu de mesmos livres sonhos
Ar de células redondas
Trem e postes se amando
Teto e sonhos se fazendo
o mesmo curto e breve traço
Nossa história passo a passo
Nosso fim desde o começo
corpo cor: régua e compasso]

25 junho, 2005

Conteúdo!

Esse blog está muito circunstancioso.

Daí que, sem algo de qualidade, nada aparece.

E nossas vidas não são assim. Os dias são cheios de vacuidades, repeticências, circunvoltâncias.

Declaro independência, revolução para voltarmos ao nada.

(cheguei!)

13 junho, 2005

Sobre as virtudes da palavra

Hoje é segunda feira, dia de muito trabalho, mas o tanto de trabalho me fez perceber como tomei Gullar ao pé da letra, e acho que me excedi.

Como ele percebeu, as "bananas podres" têm a ver com o mar, o mar, suas válvulas e pistões. De fato, nossa realidade, e o seu apodrecer convicto e inevitável, ambos têm a ver com a vida que bate em outro lugar.

Mas o que é uma descoberta, pode se tornar prisão, ou vício, ou hábito.

DAÍ QUE, segunda-e-feiramente, percebo como devo "ter a ver" mais com tudo o que me cerca, via pele, ar compartilhado, paisagens, horários, do que com o mar e suas válvulas tão longes.

(O título do "post"? Vem do encantamento com o poder revolvente da palavra, que realimenta o ciclo ver->sentir->pensar->dizer.)

E, como um presente, a constatação encharcada de auto-crítica, de que me especializei ao longo dos anos em "estar alhures". Uma boa e persistente banana podre marinha, é o que tenho sido.

[Para não desmerecer o "pueta" maranhense, vou deixar registrado que ele próprio tinha feito esta dialética, num poema que, não resistindo, vou colar abaixo.]

No mundo há muitas armadilhas

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
Ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? Te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagarin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não tem
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não tem para o almoço de hoje

A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.


Ferreira Gullar, In Dentro da Noite Veloz

02 junho, 2005

Escolhas

Desde que nasci
minha casa só fez aumentar

Eis porque é preferível
caminhar sobre o mundo
que carregá-lo nos bolsos
entre dedos,
e melhor contá-lo em muitas bocas
que tentar contê-lo em um só peito.



(Revisto e recontado a partir de original de 1990)

24 maio, 2005

Nome do blog

Caríssimos visitantes, o endereço e o nome do blog são inspirados no poema "Bananas Podres", que foi publicado por Ferreira Gullar em "Na Vertigem do Dia".

Gullar viu pistões no mar, e eu acho essa imagem muito rica, ainda mais no contexto do poema.

Como ele viu pistões, alguém teria que imaginar válvulas... Eu fiz essa parte, provavelmente com o meu lado engenheiro.

A seguir vou colocar a parte final do poema, um épico em que um herói traz o mar até as bananas podres. (Quem quiser ler inteiro veja em http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/.)


"Bananas podres

(...)

Só tem que ver o mar com seu marulho
com seus martelos brancos
seu diurno
relâmpago
que nos cinge a cintura?

O mar
só tem a ver o mar com este banheiro
com este verde quintal com esta quitanda
só tem a ver
o mar
com esta noturna
terra de quintal
onde gravitam perfumes e futuros
o mar o mar
com seus pistões azuis com sua festa
tem a ver tem a ver
com estas bananas
onde a tarde apodrece feito uma
carniça vegetal que atrai abelhas
varejeiras
tem a ver com esta gente com estes homens
que o trazem no corpo e até no nome
tem a ver com estes cômodos escuros
com esses móveis queimados de pobreza
com estas paredes velhas com esta pouca
vida que na boca
é riso e na barriga
é fome

No fundo da quitanda
na penumbra
ferve a chaga da tarde
e suas moscas;
em torno dessa chaga está a casa
e seus fregueses
o bairro
as avenidas
as ruas os quintais outras quitandas
outras casas com suas cristaleiras
outras praças ladeiras e mirantes
donde se vê o mar
nosso horizonte"

22 maio, 2005

Lolita

Eu teria talvez
quase 40
quando soube do nascimento
de um bebê
que viria a ser
minha avó materna.

Fiquei feliz, e desta vez
não por motivos interessados (como o meu próprio nascimento,
que viria um dia desses),
mas pela graça, pela força e pela beleza
do bebê,
mas,
mais ainda,
pelo simples fato de ser uma criança, menina
para nascer como mais responsável
de quatro irmãos, feliz, talvez preocupada
em cuidar de todos, e para isso
ter que resisitir ao tempo.

Talvez quarenta, talvez mais ainda
eu tivesse que levar
para conhecê-la.

Depois, bem depois de ela crescida
casar com um primo
e gerar minha mãe.

E ainda depois de enviuvar
e de longa, extensa, entusiasmadamente
trabalhar diariamente em um bar
em Nova Iguaçu.

Deveria talvez enumerar aqui suas virtudes
e relevar aqui suas falhas
e dificuldades,
mas
o fato é que amo minha vó
apenas, só e unicamente
por causa do bebê que ela foi
nesse dia.

Rio, 14 de fevereiro de 2003

15 maio, 2005

Marcos

Quando eu nasci, Marcos já estava. E era.

Tinha 2 anos, um mês e quinze dias, e meus pais devem tê-lo achado enorme ao voltarem para casa comigo nos braços.

Muitas das coisas que encontrei em casa eram dele. O cercadinho. O abajur translúcido. O burrico sobre rodinhas, com guizos, forrado de pano [e que era de palha por dentro como cientificamente constatamos].
Pai mãe avó, tia, tia-avó: todo mundo.

Tivemos uma infância agitada, proximidade desencontrada, estrangeira, apartada. Marcos terá sido o primeiro a brigar com o entalamento-de-mim-mesmo, essa insistência em Mauro que me organiza e isola.

Ainda hoje somos meninos. Ele na fala, eu no silêncio. Eu na afetividade explícita e ausente, ele na emoção dos encontros e das recontadas histórias.

(Gosta de tijolinhos, meu irmão. Veio construindo uma ponte, silenciosa e invisivelmente. Estive fora, um tempo, e ele acendeu uma luz no altar da identidade. E deixou.)

Então pelo aniversário, mas sem precisar data, dato uma vez aqui esta tijola homenagem.

10 abril, 2005

Identidades

Idênticas idades tínhamos
destínicas cidades mínimas
em muros protegidos víamos
entre desconhecidas gentes
erguer.

03 março, 2005

Eis-me

Eis-me aqui, dançando furiosamente com a solidão,

e no meio

de tantas ausências, divirto-me.

Não sei se virá alguém, e pisará, silente, o chão macio e vulgar de um site gratuito.

Não sei se sairá

-- para sempre --

e voltará -- de vez --

ao grande silêncio.


No meio de tantas hipóteses, respiro, e

com olhos francamente duros

olho.

01 março, 2005

Des pedaços

Dia desses recebi a mensagem de minha primeira namorada. Exclamante, risonha, me enviou à sombra das árvores tijucais, onde tudo era.

Vida nos levou, levou, e trouxe de volta até esta manhã.

Dez pedaços se reuniram para comemorar, e perguntaram: onde estão os outros?, para em seguida entenderem que às festas importa mais quem veio do que quem viria.

E festejaram.

26 fevereiro, 2005

Nota de abertura

Eis um blog como devem ter pensado seus criadores, um monólogo acompanhado, público, coletivo, e solitário.

Nada nada contraditário.

Fico muito grato pelas visitas (todas elas), enriquecem a alma e aquecem o coração. Sem elas, ficarei quase igual ao que sou, o que, se não é ótimo, não é tão mau assim, enfim.

Vou ter espaços para comentários também. Procurarei respeitar a gramática e as regras da sintaxe (que nunca soube).

Vou começar... com material de reaproveitamento! Abaixo fica o conto "Eu te amo", que foi publicado no blog do Noblat no dia 10 de fevereiro. Ainda gosto dele, embora já o tenha lido tantas vezes. Vou aproveitar este idílio ainda existente.

"Eu te amo.

Ele ouviu, e percebeu o silêncio, tão fora do usual, que se seguiu. Deveria dizer algo, para isso aquela pausa: para o "eu também".

E tanta solenidade, e esse esperar que ele dissesse algo a respeito?

Puxou pela memória, era a primeira vez que ela afirmava amá-lo. Na verdade, a frase era mais ou menos esperada: ela passara as últimas semanas a procurá-lo mais, e a mostrar uma nova intimidade. Contrariando hábitos, dera um jeito de vir vê-lo num sábado à noite, o que era aquilo?, e ele por sua vez tivera que inventar uma história para sair de casa. Para quê? Trocar um beijo, ouvir o sonho que ela tivera: ele aparecia só e preocupado com a hora, algo teria que acontecer e ele, no sonho, se impacientava com a incerteza.

Agora percebia, depois se haviam seguido vezes em que ela tivera momentos de silêncio, seus olhos vagando pelo teto, ao tempo em que suas mãos esfregavam-se no pedaço de pele dele mais próximo. Prenúncios.

Ela me ama.

Provavelmente é apenas nudez, pensou. As últimas vezes na cama tinham sido especialmente intensas, como se as peças finais de roupa se tivessem enfim retirado de cena. Ela parecia ter se despido, após longa relutância, relutância que ele evitara questionar. Agora estava nua, e sabia. Daí, femininamente, inferira um amor enunciável.

Nua!, despida de algo que nem sequer lembrava quando havia vestido. Esta a razão do olhar no teto, e de algumas lágrimas que ela deixara escapar. E a nudez nunca seria apenas nudez, lembrou. Era um momento único para qualquer pessoa, que exigia palavras também únicas:

Como nunca amei outro homem.

Nessa frase, a unicidade indispensável a uma constatação profunda. Haveria para sempre um herói, dono da glória e da graça de haver rompido a cadeia invisível em torno da mocinha adormecida, e de ter penetrado o círculo da impossibilidade, nele encontrando, vejam só, uma mulher de verdade.

Pensou em si mesmo sem vaidade. Apenas cumprira com paciência o papel de querer-com-vontade que tão bem lhe cabia. Não viera pela mocinha, se encantara apenas com o alargar das cadeiras, e o sorriso, em uma tarde vazia. Viera tentado a tocar o que parecia uma mulher feita, mas que, via-se agora, guardava ainda algo por fazer.

Dispensou a vaidade, mas não a alegria. Ser amado é o maior desejo, o superar das condicionalidades, o contorcer das expectativas. O não ter defeitos, o ser imortalmente necessário. Não pensou mais. Por vilania, gratidão, comodidade, e solidão, corajosamente enunciou:

Eu também."

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