Vejo Manoel ainda pequeno, pés no chão, no meio do mato ou perto dele, rodeado de bichos e plantas e sementes, inventando brinquedos, mente povoada e ao mesmo tempo ameaçada, reunindo ousadia para projetos tomara possíveis.
Manoel, Mané, Manèzinho, diminuto e filho-já-no-nome de outro Manoel, obrigado por isso a estabelecer oposição e contraponto a um pai (meu avô) falante, cambiante, excessivo em fluidez e desembaraço, abundante em desejo mas econômico em método, em ordem, em estrutura, em separação e julgamento.
Manoel, Mané, Manèzinho, herdeiro por parte de mãe de um silêncio dos afetos, da impossibilidade do contato direto, portador da missão de encontrar, no deserto, algo que represente a água, que simule a água, e que passe por líquido, mesmo sendo pedra.
Manèzinho entre irmãos, ora frágil, ora responsável, ora apoiador, ora perseguidor de padrões rígidos.
Manoel, Manèzinho, arquiteto improvisado da própria infância, solitário pai de si mesmo, manuseador da inteligência em favor da sobrevivência.
Na solidão familiar, no meio do mato, dormindo sozinho na casa e se fiando no vizinho, no transeunte, no morador de rua, no poder da pistola de brinquedo, Manoel iniciou muito cedo a luta contra fardos de fatos.
Depois de interrompida a escola, a ela voltou com sôfrega ambição; e desde então foi mente determinada, recursiva, atenta. Manoel memorizador, conector de relações entre o cotidiano e as passagens históricas, cultor dos feitos intelectuais e dos heroísmos sem glória.
Na farda adotada representou o ser responsável, o provedor, o montar guarda, o vigiar sem trégua.
No esporte foi fundista, para longos percursos, muita respiração e disciplina.
No estudo feroz afirmou vontades, matematizou a identidade, engenheirou pontes levadiças: firmes, porém pouco transitadas.
Filhos, teve, e o melhor Manoel lhes dedicou: o da proteção, o do brincar, o do exemplificar. O pai dos espaços verdes, do movimento, da invenção, da admiração do intelecto, da contemplação. Trouxe também para a paternidade suas dificuldades, pontos obscuros do não-brincar, do não-expressar, do não-admitir, do jamais-ter-entendido.
Talvez pela confiança e autonomia do Manoel que inventou pra si, não se envergonhava de sua excentricidade, e fez disso um traço em negrito a contornar peculiaridades, desafio para mentes infantis que tentavam interpretar sinais, para sabê-los perturbadores ou tranquilizadores.
Filhos teve, e no educar da única filha construiu renovação inesperada e florescente.
Assim foi meu pai, determinado, rigoroso, exigente, e por outro lado compassivo, imaginante, fantasioso.
Mais tarde em sua vida, os diálogos não resolvidos entre coração e mente vieram cobrar sua fatura atrasada.
O acidente cerebral resultou da combinação de pavimento escasso para muita intenção de fluxo, numa época em que não queria mais inventar caminhos.
Deixa filhos, tradições, legados; sonhos, contradições, guardados.
Deixa irmãos, sobrinhos, netos; leva onde pode os afetos.
E de tantos relacionamentos, ainda que árido, inacessível e por vezes intocado, deixa o ter despertado bom sentimentos, o que aqui, finalmente, a todos agradecemos.